domingo, 17 de setembro de 2017

Bastidores de um PRL

Na semana passada tive um trabalho publicado  na prestigiosa revista Physical Review Letters (ou simplesmente "PRL"), escrito em parceria com os amigos/colaboradores Edson Vernek, Gerson Ferreira (ambos da Universidade Federal de Uberlândia), Caio Lewenkopf (Universidade Federal Fluminense) e Sergio Ulloa (Ohio University).

Este artigo foi resultado de mais de três anos de pesquisa e árduo trabalho. Eu gostaria de compartilhar com os leitores do blog um pouco dos bastidores para ilustrar como é tortuoso o caminho entre uma ideia inicial e uma publicação em uma revista de alto impacto.

- O início: os resultados experimentais do ETH

Tudo começou com uma visita do Caio ao ETH-Zurique em abril de 2014. O grupo do Klaus Ensslin tinha uns resultados experimentais interessantes "saindo do forno" e queriam discutir alguns pontos que não estavam entendendo.

O experimento do grupo do ETH envolvia medidas de alta precisão da corrente elétrica em um "circuito" nanoscópico formado por um ponto quântico acoplado a uma "cavidade" e ambos conectados a contatos metálicos pelos quais passa uma corrente elétrica. O esquema deste circuito está ilustrado na figura abaixo.

Experimento do grupo do ETH.Esq. esquema do "circuito" nanoscópico. Dir: medidas da condutância para o casos de acoplamento fraco (acima) e forte (abaixo) entre ponto quântico e cavidade. Adaptado de PRL 115 166603 (2015)

O experimento consiste, basicamente, em passar uma corrente elétrica que sai da fonte ("source") e é coletada em um sumidouro ("drain"). Mede-se então a condutância através do dispositivo, formado por um ponto quântico ("dot") e uma cavidade ("cavity"), que são regiões onde os elétrons ficam temporariamente confinados. Um aspecto importante é que existe um controle bastante grande nos parâmetros, tais como tensões de gate aplicadas no ponto quântico e na cavidade e a temperaratura. Vale ressaltar que tudo é feito a temperaturas baixíssimas (menos de 4 Kelvin) de modo que o sistema é refrigerado a Hélio líquido. Hoje em dia, isto é algo standard neste tipo de experimento. O interessante é que o sistema é pequeno e limpo o suficiente para que efeitos da natureza ondulatória do elétron (previstos pela mecânica quântica) se manifestem. 

A figura à esquerda mostra uma imagem do circuito propriamente dito feito com um microscópico eletrônico. A tecnologia empregada para fazer o dispositivo é impressionante. O grupo do ETH domina técnicas de litografia capaz de "desenhar" tais estruturas (e fazer os contatos funcionarem!) com alguns nanômetros de precisão. Para dar uma ideia, o maior elemento no circuito é a cavidade, que tem um comprimento de cerca de 1 micron. Isto é cerca de cem vezes menor que a espessura de um fio de cabelo humano.  Sem falar na alta qualidade da amostra de semicondutor (arseneto de gálio) sobre o qual a estrutura foi feita: as amostras saem do laboratório de Werner Wegscheider (que, por sinal, esteve recentemente no Brasil), um dos melhores do mundo no que faz.

Sem a cavidade, o que temos é o tunelamento de elétrons através do ponto quântico, o que resulta em uma sequência de picos na condutância separados por vales de condutância baixa, causados pelo chamado bloqueio de Coulomb dos elétrons. Se a temperatura for muito baixa (da ordem de dezenas de mili-Kelvin), algo um pouco mais exótico pode ocorrer: o efeito Kondo, cuja assinatura é o aumento da condutância em alguns dos vales. Se a cavidade estiver presente, a natueza ondulatória do elétron se manifesta e a formação de padrões de interferência dos elétrons influem nos resultados das medidas da condutância.

Estes resultados aparecem no experimento no caso em que o acoplamento do ponto quântico com a cavidade é baixo. Neste caso, o transporte através do sistema é uma sequência de picos (Figura à esquerda) que advém de uma mistura do efeito Kondo com a cavidade. No entanto, algo diferente aparece para o caso de acoplamento alto: os picos são suprimidos e viram "vales". Este último era o resultado que o pessoal do ETH não entendia.

- Formulando o modelo

Caio mostrou estes resultados para mim e para o Sergio Ulloa, que já tinhamos escrito um artigo publicado no PRL em 2006 fazendo uma análise teórica/computacional de um sistema parecido com o do ETH. Durante o ano de 2014, eu trabalhei em uma modificação do nosso modelo anterior para incluir a cavidade, bem como  na implementação do código de simulação computacional do modelo. Os primeiros resultados saíram no final de 2014 e início de 2015 e eram promissores.

Em maio de 2015, o Klaus Ensslin veio ao Brasil participar do 17o Brazilian Workshop on Semiconductor Physics em Uberlândia, organizado pelo Edson e pelo Gerson. Conversamos sobre o tema e mostrei alguns dos resultados preliminares. Ele achou interessante mas perguntou se eu havia calculado a condutância, o que ainda estava por fazer. Nesta mesma conferência, conversei com o Edson e com o Gerson e soube que estavam interessados no mesmo problema. Decidimos unir forças.

- Os primeiros problemas

Logo percebemos que o cálculo da condutância era um problema difícil. O procedimento-padrão para este cálculo neste tipo de sistema é usar a fórmula de Landauer ou, no caso, a extensão para sistemas interagentes proposta por Meir e Wingreen em um famoso paper de 1992. O problema é que a fórmula de Meir e Wingreen se aplica a uma classe de dispositivos em que a geometria do acoplamento com os contatos obedece à chamada condição de "acoplamento proporcional".

Em termos simples, isto significa que se um sistema está acoplado a dois contatos (L e R), para todo caminho que leva do contato L ao sistema. tem que haver um acoplamento parecido do sistema para o contato R. Além disso, as intensidades dos acoplamentos L-sistema e sistema-R tem que ser proporcionais entre si.

Representação do nosso modelo para o circuito. Adaptado de PRL 119 116801 (2017) 


Isto definitivamente não era o caso do sistema do ETH. Como mostra a figura acima, a cavidade estava acoplada ao contato da direita (R) mas não ao da esquerda (L).

Estávamos em um impasse: ou desistíamos do cálculo da condutância ou tentávamos fazer algum tipo de generalização da fórmula de Meir e Wingreen para sistemas que não obedecem o acoplamento proporcional, algo que nunca havia sido feito. Decidimos tentar a segunda (e audaciosa) opção. 

Em meados de 2015, o Caio veio à USP passar um tempo visitando o grupo do Adalberto Fazzio e aproveitamos para trabalhar neste problema. Ele teve um insight e vimos que, no nosso caso, seria possível escrever uma expressão para a condutância mas que não seria simples. As manipulações algébricas eram longas e tediosas. De qualquer modo, tínhamos encontrado o fio da meada.

- Bugs e mais bugs...

Encontramos uma expressão e trabalhei no código computacional para fazer as contas. Parecia tudo bem mas havia um problema grave: para alguns valores de parâmetros, a expressão da condutância retornava valores que não faziam sentido físico nenhum. Ou seja, havia algum erro no código ou nas contas.

O código foi exaustivamente rechecado e parecia ok. O Gerson escreveu um outro código para testar uma versão mais simples do modelo e o resultado batia com o meu. Chegamos à conclusão que o problema era nas contas. Este processo de checagem e re-checagem levou quase um ano (!).

Em outubro de 2016, o Edson veio a São Paulo e decidimos abrir todas as contas até achar o problema. Colocamos tudo em um grande quadro negro da sala de seminários do DFMT no Instituto de Física da USP (foto abaixo) e procuramos por algo errado.


Depois de algumas horas olhando as contas, finalmente encontramos o erro.

Eu (dir) e Edson Vernek (esq) no dia em que encontramos o erro nas contas. 

- Escrevendo o paper

Com o cálculo da condutância resolvido, a coisa andou rapidamente. Encontramos um regime de parâmetros compatíveis com os utilizados no experimento e as nossas curvas de condutância concordavam bastante bem com os dados experimentais (figura abaixo): para um acoplamento fraco entre o ponto quântico e a cavidade, a condutância apresentava picos enquanto que no caso de acoplamento forte os picos viravam vales. 

Além disso, mostramos que o efeito Kondo estava sempre presente, algo que o pessoal de Zurique argumentou que não ocorria. Estávamos oferencendo uma interpretação alternativa, em que a diferença entre os dois regimes era causada essencialmente de interferências quânticas e não por uma supressão do efeito Kondo.

Resultados do nosso modelo (esquerda) reproduzem qualitativamente os resultados experimentais (direita): picos na condutância para acoplamento fraco se tornam vales quando o acoplamento é forte. 

Submetemos o artigo ao PRL em fevereiro de 2017. Recebemos o primeiro round de reviews em maio. Um dos referees recomendou o paper para publicação e o outro concordava que o paper era bom e interessante mas não achava que tinha novidade suficiente para um PRL (recomendou publicação no PRB). Recorremos e oferecemos novos argumentos, mostrando que a extensão da fórmula de Meir-Wingreen que derivamos não era trivial. Afinal, era um problema em aberto há mais de 20 anos. Também refizemos algumas contas e obtivemos resultados ainda mais condizentes com os do experimento. 

Na resubmissão, o paper foi para um terceiro referee que concordou com nossos argumentos. O paper estava aceito.

- Afinal, o sucesso!

Recebemos a notícia logo antes do 18o Brazilian Workshop on Semiconductor Physics que eu e o prof. Felix Hernandez organizamos este ano e do qual todos os autores (Edson, Gerson, Caio, Sergio e eu) participamos. Resolvemos fazer um brinde para comemorar.

A partir da esquerda: Edson Vernek, Caio Lewenkopf, Gerson Ferreira, Sergio Ulloa e eu.

No geral, este trabalho mostra que o caminho até um resultado importante pode ser longo e árduo. Foram 3 anos de trabalho e, por mais de uma vez, achei que seria difícil emplacar um PRL. O esforço acabou recompensado.