sábado, 15 de outubro de 2016

O Prêmio Nobel de Física de 2016 e a conexão com os isolantes topológicos

O Prêmio Nobel de Física de 2016 foi conferido a David Thouless (University of Washington), Duncan Haldane (Princeton University) e Michael Kosterlitz (Brown University) por suas várias e importantes contribuições no estudo de transições de fase topológicas e, mais genericamente, na descoberta de fases topológicas da matéria. Thouless recebeu metade do prêmio e Haldane e Kosterlitz dividiram a outra metade. Curiosamente, os três são britânicos (Thouless e Kosterlitz são escoceses e Haldane é inglês) mas passaram boa parte de suas carreiras nos Estados Unidos.

Especulações em torno de um Nobel a Thouless já estavam no ar há algum tempo. Além de suas contribuições diretamente ligadas ao prêmio deste ano, ele tem trabalhos importantes em sistemas desordenados (o “tempo de Thouless” é o tempo de difusão característico em condutores difusivos), vidros de spin e em supercondutividade. Os trabalhos com Michael Kosterlitz em transições de fase em sistemas 2D já haviam sido reconhecidos em 2000 com o prêmio Lars Onsager da American Physical Society. Ele também teve grande participação na interpretação da condutância Hall em termos de um “invariante topológico” (conhecido como “invariante Thouless-Kohmoto-Nighting-Nijs” ou simplesmente “TKNN”), o que justifica o fato de ter levado metade do prêmio.

Haldane, por sua vez, também teve outras contribuições importantes em matéria condensada além de seus trabalhos em sistemas com fases topológicas. Um de seus artigos mais influentes se refere a um estudo de scaling no modelo de Anderson de impurezas magnéticas, onde é apresentada a famosa “fórmula de Haldane” para a temperatura de Kondo em termos dos parâmetros do modelo.

Topologia em sistemas eletrônicos

O Prêmio deste ano destaca o papel da topologia nas propriedades de sistemas eletrônicos. Este assunto foi bastante proeminente nos anos 80 com a descoberta do efeito Hall quântico por Klaus von Klitzing e colaboradores e pelo qual von Klitzing levou o Prêmio Nobel em 1985. O efeito Hall quântico (QHE) é caracterizado pela quantização da condutância de um “gás de elétrons” bidimensional na presença de um campo magnético ortogonal aplicado ao plano do gás. Uma particularidade importante é que o interior do sistema permanece com um gap de energia em seu espectro, uma característica típica de isolantes. Ainda assim, o transporte eletrônico ocorre devido à presença de estados metálicos na borda do sistema com uma orientação específica de circulação (“quiralidade”) que aparece devido à quebra da simetria de reversão temporal pelo campo magnético externo (vide Figura 2 abaixo).

Ou seja, é um sistema estranho: nem totalmente isolante, nem, de fato, um metal. Rapidamente chegou-se à conclusão de que o estado Hall quântico é, de fato, um estado da matéria que não entra no paradigma de Landau: são isolantes volumétricos (``bulk") mas apresentam condução por estados de borda quirais. Assim, não é possível descrever a transição para o estado topológico por uma quebra de simetria caracterizada por um “parâmetro de ordem” como ocorre com outros estados da matéria.


Analogia entre o “número de buracos” de um objeto e o invariante topológico TKKN, que define o valor da condutância no efeito Hall quântico. Fonte: nobelprize.org 

O invariante TKNN e o modelo de Haldane

Parte deste quebra-cabeça foi resolvido em 1982. Em uma bela demonstração, Thouless, juntamente com Mahito Kohmoto, Peter Nightingale e Marcel den Nijs (TKNN) associaram a condutividade do sistema Hall a um “invariante topológico", no caso, um “número de Chern". Este número é invariante frente a deformações que não alterem a topologia dos estados de Bloch na zona de Brillouin de um isolante Hall com um dado fator de preenchimento. 

Isto é exemplificado na figura acima, que mostra a popular analogia com o número de “buracos” Nb de um objeto, representando o invariante topológico. Como é possível deformar uma esfera em um copo sem abrir nenhum buraco, ambos são topologicamente equivalentes, caracterizados pelo mesmo valor Nb=0. Já uma xícara tem Nb=1, sendo topologicamente distinta do copo e de um óculos (Nb=2), e assim por diante.

O invariante TKNN também assume valores inteiros (correspondentes ao fator de preenchimento) e Thouless e colaboradores mostraram que a condutância do efeito Hall é diretamente proporcional a este número. Assim, cada platô na condutância Hall corresponde a um estado de topologia distinta, representado pelo fator de preenchimento, como mostrado na Figura 1 acima. Um importante aspecto é que, nesta formulação, os platôs de condutância são naturalmente robustos frente a deformações no sistema que não alterem o fator de preenchimento tais como mudanças na geometria da amostra, presença de centros espalhadores, potenciais confinantes, etc. Neste sentido, podemos nos referir a sistemas que apresentam o QHE como “isolantes topológicos", termo bastante em voga hoje em dia.

Estados de borda quirais no efeito Hall quântico (esq) e estados de borda helicais no efeito Hall quântico de spin (dir). Fonte: Maciejko et al. Annu. Rev. Cond. Matt. Phys. 2, 31–53 (2011)

Por muitos anos, o QHE foi o único representante de um isolante topológico, o que levou a várias tentativas de construir modelos com características similares. Em 1988, Duncan Haldane publicou um artigo no Physical Review Letters em que abordava a seguinte questão: É possível encontrar em um sistema que preserve a simetria de reversão temporal e que, ao mesmo tempo, apresente uma condutância Hall descrita por um invariante topológico? A resposta é sim. Haldane elaborou um modelo para férmions “sem spin” em uma rede hexagonal onde os fluxos magnéticos locais em cada hexágono tem sinais alternados de modo a manter o fluxo magnético global igual a zero, preservando assim a simetria de reversão temporal do sistema. O resultado é um isolante no bulk com simetria de reversão temporal e que, ao mesmo tempo, possui estados de borda metálicos e topologicamente protegidos. A caracterização é feita por um número de Chern que assume valores 0 ou ±1, em contraste ao caso TKNN, em que o número de Chern assume valores inteiros (0,1,2,3,...).

O efeito Hall quântico de spin e os isolantes topológicos

Apesar de interessante, faltava ainda encontrar um sistema físico em que o modelo pudesse ser aplicado. O próprio Haldane admite no artigo que “é pouco provável que o modelo específico apresentado aqui seja diretamente realizável em um sistema físico”. Em 2005, esta questão foi ressuscitada por Charles Kane e Eugene Mele em dois artigos publicados no Physical Review Letters (cada um já conta com mais de 2000 citações). Em um dos artigos, eles consideram duas “cópias” do modelo de Haldane para descrever um sistema eletrônico com spin, que também será caracterizado por invariante topológico Z2 que assume apenas os valores 0 (fase “trivial”, equivalente a um isolante comum) e 1 (fase “topológica”). A fase topológica apresenta o que eles denominam “efeito Hall quântico de spin”, caracterizado por estados de borda metálicos helicais (não apenas quirais como no efeito Hall usual) em que elétrons com spins distintos se propagam em direções opostas, como mostrado na figura acima.

Uma consequência importante é que estes estados são “topologicamente protegidos”: elétrons de spins diferentes “não se enxergam” de modo que a condutância através dos estados de borda é perfeitamente quantizada. Posteriormente, os mesmos autores aplicaram esta ideia ao grafeno na presença de uma interação spin-órbita (erroneamente superestimada no trabalho, como se comprovou depois), que seria então a realização experimental de um “isolante topológico em 2D ".

Em termos gerais, as ideias de Kane e Mele ecoam às de Thouless e colaboradores e de Haldane, com uma diferença crucial: a helicidade dos estados de borda. Isolantes topológicos em 2D contam com dois estados contra-propagantes e de spins opostos protegidos pela simetria de reversão temporal em cada borda (vide figura acima). De qualquer modo, é inegável que os trabalhos de Thouless e Haldane tiveram influência direta no surgimento da atual “onda” de trabalhos no tema de isolantes topológicos.

A promessa de um estado topológico no grafeno, no entanto, ainda não se concretizou, embora a intensa pesquisa no tema tenha levado à descoberta do efeito Hall quântico de spin em outros materiais como poços quânticos de HgTe. A fenomenologia de isolantes topológicos foi descoberta também em sistemas 3D à base de bismuto como Bi2Se3 e Bi2Te3. Por tudo isso, Kane é outro personagem frequentemente lembrado nas apostas para levar um futuro prêmio Nobel. Mas isto será assunto para um outro artigo.


Texto originalmente publicado no Boletim Informativo do IFUSP em 14/10/2016

domingo, 5 de junho de 2016

O quão grave é a crise financeira da USP?

Imagine que você seja o sìndico de um prėdio que arrecada R$ 100 mil por mês em condomínios. O problema é que você tem que pagar R$ 104 mil em salários ao zelador, porteiros, faxineiros, etc. Todos esses funcionários tem estabilidade (não podem ser demitidos) e os moradores não querem nem ouvir falar em aumento no valor do condomínio. A reserva de caixa que você usa para pagar as contas e manter os elevadores funcionando acaba em um ano. O que você faz?

Bem-vindo à crise da USP.

Segundo dados da Coordenadoria de Administração Geral (CODAGE), entre janeiro a julho de 2016 a Universidade de São Paulo recebeu uma média mensal de R$ 374,6 milhões em repasses relativos à quota-parte do ICMS. Ocorre que, no mesmo período, a USP gastou uma média de R$ 392,4 milhões em salários (vide tabela abaixo). Ou seja, mais de 104% de compromentimento das receitas com folha de pagamento. Esse número só tende a piorar, dado que a arrecadação do ICMS está em queda.


De onde vem, então, o dinheiro para cobrir essa diferença e todo o resto do custeio (luz, água, manutenção, investimentos, etc.)? Tem vindo de uma reserva financeira que a USP construiu ao longo dos anos. Segundo um parecer da Comissão de Orçamento e Patrimônio (COP) do Conselho Universitário da USP, esta reserva estava em R$1.382 milhões no final de abril, com previsão de ficar em R$592 milhões ao final de 2016. 

Com base nesses dados e fazendo uma conta simples (a famosa "regra de 3" que os vestibulandos adoram), chegamos à conclusão que as reservas estão diminuindo a uma taxa de aproximadamente R$ 98 milhões por mês (obviamente isso varia mês-a-mês mas é uma estimativa razoável).  Em outras palavras, se nada mudar, estas reservas terminarão em junho do ano que vem. 

Mesmo com um reajuste pequeno nos salários (de 3%, beeem abaixo da inflação acumulada), essa taxa subiria para R$ 109 milhões por mês, segundo a COP. Isso significa que o dinheiro acaba mais cedo, possivelmente no final de abril/início de maio de 2017 (estimativa minha).

Depois disso, nada. Zero. zilch, nothing.

Quais as alternativas e cenários? A reitoria não tem dado muitas, além do discurso de "conter gastos". Parece até uma estratégia deliberada até que a situação chegue a níveis insuportáveis, inclusive com atraso no pagamento de salários e do 13o. Isto é o que está nas entrelinhas de uma mensagem do Gabinete do Reitor em 11 de maio último sobre a declaração de greve dos funcionários:

Esse tipo de provocação não faz parte das relações modernas entre servidores e a administração da instituição, e adquire ainda mais gravidade nesse momento de grandes incertezas políticas e econômicas, com desemprego crescente, perda de valor de salários, redução brutal de receitas públicas e até atrasos e suspensão de pagamentos de salários por entes públicos.

 A solução proposta pelos sindicatos (Sintusp e Adusp) é simples: deem-nos mais dinheiro. Isso é a base da chamada "luta" contra o aumento de 3%   e por mais repasses de recursos  Acho improvável um aumento nos repasses do governo estadual na atual conjuntura. Tal demanda é é inócua frente a uma pressão de boa parte da sociedade (e do próprio governo do PSDB) contrária ao aumento de gastos públicos. 

O que me preocupa de verdade são que greves na USP acabam sendo um tiro no nosso próprio pé na medida que provocam reações como as ilustradas abaixo. São comentários de uma noticia recente da Folha sobre uma passeata de funcionários da USP em greve:



Embora exista o "troll bias" (um viés de crítica rançosa e sem fundamentos típica da Internet) nesses comentários, meu sentimento é que este tipo de pensamento está cada vez mais comum. Estamos perdendo a batalha que realmente importa: a de mostrar à sociedade paulista e brasileira o que significa ter uma univesidade de pesquisa de ponta em um país como o Brasil. Mostrar que, na USP, a grande maioria dos docentes e servidores trabalha, e muito (hoje, Domingo, estou rodando simulações computacionais e trabalhando em outro artigo, além de corrigir projetos de alunos e escrever este post).

Sem o apoio da sociedade, a "luta" estará, de fato, perdida.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Entrevista ao blog Aleatoriedades Científicas


Nesta semana, dei uma entrevista ao blog Aleatoriedades Científicas (ou não).

O blog é gerido por dois estudantes (Rafael Azevedo e Mateus Galdino) do curso de Química da USP e é voltado para os próprios estudantes de Graduação, com video-aulas, entrevistas e outros conteúdos,

Achei a iniciativa bastante positiva e fico feliz de poder ter contribuido com o projeto.

Na entrevista, falo um pouco de minha carreira, de como é ser um pesquisador em Física e também sobre temas de interesse direto dos estudantes como iniciação científica e até empreendorismo (!).

O Rafael foi meu aluno no único curso de Laboratório que ministrei na USP até hoje. Não deixa de ser irônico já que, na entrevista, eu conto um episódio que me fez ter certeza que não seria um bom físico experimental.

Confira o audio da entrevista:

ou faça o download do mp3 aqui.