sábado, 12 de abril de 2014

BICEP2 e inflação cósmica: tá tudo dominado?

Na quarta-feira passada o prof. L. Raul Abramo deu um seminário sobre o experimento BICEP2 no "Convite à Fisica" do IFUSP.

Para quem não sabe, o BICEP2 é um experimento realizado na Antartida com detectores específicos para estudar a radiação cósmica de fundo em micro-ondas (ou "CMB", o popular "eco do Big Bang"). Resultados divulgados no final de Março apontam fortes evidências de uma assinatura de "marcas" de ondas gravitacionais impressas na CMB.

É um assunto fascinante e quente no momento. Se este resultado for confirmado, há fortes especulações de um prêmio Nobel, o que explica as manchetes mais exarcebadas. Para uma recapitulação do assunto (que, leigo que sou no tema, não farei aqui), vide um artigo da Nature, o texto do Marcelo Gleiser para a NPR, e blogposts de experts (mais avançados) aqui e aqui. Em português, recomendo os textos dos blogs Simetria de Gauge e Todas as Configurações Possíveis.

O seminário do prof. Raul foi bastante ilustrativo e chamou a atenção para alguns pontos importantes sobre a real relevância do experimento e da cautela que se deve ter antes de abrir o champagne para comemorar o prêmio Nobel.

Comecemos pela imagem que roda o mundo: o padrão de polarização medido pelo experimento.

"From BICEP2 collaboration/Nature (link)".
É uma imagem bastante ilustrativa. Vemos a "olho nú" um modo com um rotacional não-nulo, o chamado "modo B" de polarização que seria de ondas gravitacionais dos primórdios do Universo. No entanto, acho que o gráfico-chave da história toda é este aqui:


O gráfico mostra, a grosso modo, a intensidade na polarização do modo B de ondas gravitacionais versus o inverso da escala de comprimento das ondas  ("Multipolo"). As curvas vermelhas mostram previsões teóricas. A previsão para o sinal gerado por ondas gravitacionais é que ele domine em grandes escalas de comprimento ("Multipolo" pequeno), conforme indicado pelas linhas tracejadas.

Os símbolos correspondem a dados experimentais do BICEP e limites de detecção de outros experimentos "concorrentes". Como o eixo vertical está em escala logarítmica, vê-se, de cara, que o BICEP (pontos cinzas e pretos) conseque detectar sinais 100 vezes mais fracos que seus concorrentes (pontos coloridos), o que, em si, já é um feito notável.

O grande resultado é que os dados do BICEP2 (pontos pretos) mostram uma concordância muito boa com a teoria de ondas gravitacionais para grandes escalas (linha tracejada vermelha na parte inferior mais à esquerda).

Suficiente para estourar o espumante e esperar o Nobel? Well, not so fast. Como apontou o prof. Raul na sua fala (e também mencionado por Matt StrasslerPeter Coles em seus blogs) há algumas nuvens de chuva no horizonte.

Por exemplo, note que alguns os pontos pretos não seguem as curvas vermelhas para valores de multipolo em torno 200: eles desviam para cima, ficando acima mesmo da curva teórica que prevê para ondas gravitacionais geradas pelo efeito de lente gravitacional.

Retirado do blog de Matt Strassler  (link) .
Embora isso pareça um desvio "pequeno" no gráfico, é importante notar que:
i) A diferença para a curva vermelha está fora das barras de erro (embora os autores estejam confiantes de que sejam apenas artifatos estatísticos).
ii) A escala vertical é logaritmica, de modo que o desvio em valores absolutos não é tão pequeno assim.

Um outro ponto importante é que os dados do BICEP2 foram obtidos para apenas uma frequência de ondas gravitacionais (150Hz). A previsão é que o sinal seria robusto para uma gama grande de frequências.

EM RESUMO: O experimento determina o estado da arte em matéria de detecção de modos de polarização na radiação de fundo e os resultados são impressionantes. Muito possívelmente o sinal medido é, de fato, uma assinatura de ondas gravitacionais geradas nos primórdios do Universo. (vide update de 03/02/2015 abaixo)

Ocorre que há algumas características dos dados que ainda não estão bem explicadas. Além disso, por ter tomado dados em apenas uma frequência e em uma faixa restrita do céu, os dados atuais ainda são insuficientes para reinvindicar uma verificação experimental da teoria de inflação cósmica. É preciso aguardar um pouco mais (a publicação de resultados de outras frequências, por exemplo) para dar o veredito final.

Update (21/04):  texto da New Scientist, baseado em um artigo no arXiv, relata que  "loops de poeira" presentes no campo de observação do BICEP2 podem estar interferindo com a medida do modo-B de polarização.

A mensagem: até que os dados sejam confirmados (Planck? Keck?) e o sinal apareça em outras faixas de frequência, teorias sobre a origem do modo de polarização vão aflorar.

Update (14/05): Post recente do blog Résonaances (via Science Now) coloca em dúvida o método de subtração do sinal de fundo usado pela equipe do BICEP2. Esse sinal é radiação polarizada emitida por partículas de poeira galática (contribuição de "foreground") que deve ser subtraído para se obter a polarização no "background", supostamente advinda de ondas gravitacionais.

Aparentemente a equipe do BICEP2 usou dados "não oficiais" da colaboração Planck, retirados do pdf de um gráfico apresentado em uma conferência (!!) para estimar o sinal de "foreground" de emissão galática. No entanto, o gráfico teria outras contribuições, que tornariam os dados inadequados (para não falar do método pouco ortodoxo de "compartilhamento" de dados).

Houve o rumor que o pessoal do BICEP2 admitiu o erro, o que eles negam.

Novamente: especulações como essa vão aparecer e dar o que falar até que dados de outros experimentos (Planck, etc.) apareçam.

Update (03/02/2015): É oficial: BICEP2 não detectou ondas gravitacionais. Uma análise conjunta com os dados da colaboração Planck mostra que o sinal detectado pelo BICEP2 se deve, de fato, à poeira galática.

Essa vai para a história como mais um exemplo de que "descobertas extraordinárias requerem evidências muito, muito fortes". É o método científico em ação.

2 comentários:

  1. Com todo respeito aos autores dos blogs citados, o desvio não é significante. No paper mesmo eles dizem que esse desvio é abaixo de 3 sigmas e a mesma equipe não vê o desvio no novo array de telescópios (o keck, que é idêntico ao bicep2, mas cinco vezes maior). Essa preocupação com o excesso em torno de l ~ 220 é sobre-interpretação de dados.

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  2. Bem colocado. Isto está mencionado em uma nota no blog do Matt Strassler. Agora, como dito aqui:

    Another justification some people have been providing (mostly people from outside the BICEP collaboration to be fair, though some from within it as well) is that the preliminary data from the Keck array, which is a similar instrument to BICEP but with higher sensitivity, appear to show no anomaly in that region. I think this is a somewhat dangerous argument, because the Keck data also don't seem to be quite so high in the region of the crucial first four bandpowers! In any case, the "official" word from BICEP is that any such speculation on the basis of Keck is to be discouraged, because the Keck data is still very preliminary and has not been properly checked.

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