domingo, 12 de setembro de 2010

A Física do chute: de Pelé a Roberto Carlos

Na semana passada, me chamou a atenção a publicidade em torno de um artigo publicado pelo "New Journal of Physics" que, segundo a mídia , "desvenda o segredo de gol de Roberto Carlos"(vide, por exemplo, reportagem de "O Globo"). O artigo foi tema de vários sites de divulgação científica, como o "Weekly Newsbrief" da American Physical Society e no blog da Scientific American. Em suma, um sucesso de "Relações Públicas" dos autores e do "New Journal of Physics".

Como é de praxe nesses casos, o artigo em si é bem menos bombástico do que a mídia em torno dele. É um artigo relatando medidas feitas em laboratório (e não em um campo de futebol) com bolinhas de polipropileno de alguns milimetros de diâmetro sendo atiradas em um recipiente com água e os autores mediram velocidade,
velocidade angular e a trajetória subsequente. Nada de medidas com bolas de futebol ou coisa do genêro. Na verdade, a referência ao gol do Roberto Carlos só aparece no finalzinho, antes das conclusões, e apenas de forma especulativa. Ou seja, a frase que abre a matéria do Globo ("Um dos gols mais incríveis da história do futebol, marcado pelo lateral esquerdo Roberto Carlos pela seleção brasileira há 13 anos, foi tema de um estudo feito por físicos na França") é um tanto exagerada.

Comentando o assunto
em um recente boletim da Sociedade Brasileira de Física, o prof. Paulo Murilo Castro de Oliveira (UFF) menciona um artigo publicado em uma revista brasileira sobre o mesmo assunto. O artigo, publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física (RBEF) em 2004, analisa o famoso "gol que Pelé não fez" no jogo contra a Tchecoslováquia na Copa de 1970. Os autores, prof. Carlos Eduardo Aguiar e Gustavo Rubini (UFRJ), analisam as imagens do gol e fazem uma discussão interessante em torno de um modelo físico e uma simulação computacional relativamente simples que explicaria a trajetória da bola.

A Física por trás dos chutes

Embora não seja minha área de pesquisa, gostei muito de ler os dois artigos no final de semana. Afinal, misturam Física e futebol, uma combinação perfeita para a proposta desse blog :).

Ambos os artigos discutem dois elementos básicos de dinâmica dos fluidos que influem na trajetória de uma bola de futebol: a força de arrasto (e sua
dependência com a velocidade da bola) e o "efeito Magnus", a força de sustentação (perpendicular à velocidade) devido à rotação da bola.

A manifestação do efeito Magnus é evidente para qualquer um que viu grandes cobradores de falta (como Zico, Rivelino, Neto, Marcelinho Carioca, Ronaldinho...) em ação: é a força que "curva" a trajetória da bola pelo fato de ela estar rotacionando em torno do próprio eixo.

Já os efeitos de arrasto são um pouco mais sutis em futebol (embora sejam dominantes em esportes como golfe e tênis). Em particular, é de se notar a chamada "crise do arrasto", uma súbita diminuição da resistência do ar quando a velocidade da bola (ou, mais especificamente, seu número de Reynolds) passa de um certo valor crítico. O valor da velocidade crítica para bolas de futebol depende dos detalhes da superfície da bola mas, de modo geral, está próximo a 20 m/s. Chutes fortes (em torno de 30 m/s) podem então ultrapassar esse valor.

É interessante notar que a velocidade crítica para a (mal-)afamada bola Jabulani é aparentemente diferente do que a encontrada em bolas de futebol típicas (vide esse link), o que pode contribuir para o seu comportamento "sobrenatural" e à avalanche de críticas que recebeu.

A ação conjunta do arrasto e do efeito Magnus faz com que a trajetória da bola possa ser não usual (ou "sobrenatural", como diria Luiz Fabiano, descrevendo a Jabulani), diferente do que a trajetória um goleiro profissional esperaria. Isso explicaria, segundo os autores do artigo da RBEF, o quase gol de Pelé
e até a famosa "folha seca" de Didi. Os autores do artigo do NJP atribuem o gol do Roberto Carlos à uma trajetória espiralada, onde o raio de curvatura diminui à medida em que a bola se aproxima do gol.

Agora, isso fornece a explicação mas não promete uma "fórmula" para qualquer um dar um chute perfeito: isso ainda requer muito, muito treino e, obviamente, talento.

Update: Um artigo na Physics World de 1998 também dá uma boa introdução ao assunto.

Update II (Nov/2010): amigo desde os tempos de Unicamp, o prof. Adilson Motter (Northwestern University), nota que o 4o. gol do Grêmio na vitória sobre o Ceará no Campeonato Brasileiro de 2010 poderia ser incluído na lista de gols originados pela crise do arrasto. Ele é
gremista, obviamente.

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